“Para a maior parte das pessoas dos dias de hoje essa Cultura não passa de um campo em ruínas incapaz de reivindicar qualquer autoridade que seja — que aliás quase que nem consegue reter a nossa atenção”. Hannah Arendt, Tradição e a Era Moderna, em Entre Passado e Futuro. Tradução por Miguel Monteiro.

Em tempos em que a destruição completa do principal museu nacional passa sem importância para uma parte da população, é preciso refletir sobre o papel da cultura e do patrimônio do passado na nossa sociedade. Tudo parte de um dado: nós temos vestígios sobre civilizações do passado em forma de textos, pedras, moedas, pinturas etc. Resta-nos saber, e a resposta não é evidente, o que devemos fazer com estes restos de vidas passadas. De início, se queremos conservá-las. Em caso positivo, mantê-las por qual razão?  

Se decidimos que o patrimônio cultural do mundo antigo é digno de conservação, então precisamos refletir sobre o seu papel na sociedade atual. Nosso tempo é marcado, como estudos tão distintos têm demonstrado – do presentismo de François Hartog ao tempo-cão de Maria Rita Kehl- por uma concepção acelerada e imediatista do tempo, na qual as coisas tornam-se menos importantes à medida que se afastam do ponto de ancoragem fundamental da nossa experiência contemporânea do tempo: o aqui e agora da satisfação imediata do presente. Nesse quadro, projetos de futuro e sabedorias do passado passam a ser vistos, infelizmente, como excentricidades cultivadas por intelectuais ou artistas.

Um caminho para pensar este assunto é encarar o patrimônio dos antigos como uma coleção riquíssima de sabedoria vinda de outras vozes, que possuíam coordenadas outras para compreender e explicar o mundo. Esta modalidade de pensamento pressupõe que o contraste entre o conhecimento moderno e a sabedoria dos antigos, que não necessariamente se inscreve numa linha de continuidade temporal, propicia uma ótima oportunidade para repensarmos nossa maneira contemporânea de viver em sociedade e de nos relacionarmos com a natureza.

Esta estrada de defender a relevância deste contato e comparação com a σοφία (sabedoria) dos antigos é seguida por Miguel Monteiro, estudioso da Universidade de Coimbra. Ele acaba de escrever um pequeno mas muito útil Guia de Iniciação aos Estudos Clássicos. Este material deve, penso, ser lido por todos os (as) estudantes e professores (as) e formar um elemento obrigatório nos programas das disciplinas universitárias sobre a Antiguidade. 

Destaco alguns pontos fortes deste material. A primeira parte, “As línguas clássicas”, e a segunda, “Recursos e estratégias”, oferecem orientações muito ricas, concretas e acessíveis acerca do estudo do grego e do latim (quem for um iniciante nestes idiomas ou pondera estudá-los precisa, agora, começar por aqui). O autor enfatiza, com acerto, o papel da composição, isto é, a escrita de frases em grego e latim, como maneira de aprender com mais qualidade o vocabulário, a morfologia e a sintaxe destes idiomas. Miguel também apresenta uma interessante discussão acerca do papel da memorização do vocabulário no estudo destas línguas. Sem cair no dogmatismo dos velhos métodos que idolatravam a memorização, Miguel mostra como a memorização tem lugar de relevo mesmo dentro das metodologias mais recentes de aquisição destas línguas estrangeiras. Vários outros auxílios aos estudantes que abordam o grego e o latim são oferecidos neste guia, incluindo estratégias de leituras e indicações bibliográficas de gramáticas, dicionários e livros de método de aprendizado. Duas sugestões poderiam ser feitas para estas seções visando, talvez, uma futura reedição deste Guia: uma menção ao dicionário Grego-Italiano coordenado por Franco Montanari, que agora possui uma versão em inglês publicada pela Brill; um apêndice direcionado aos (às) professores (as) de grego e latim, com sugestões de metodologia de ensino.

A terceira parte do guia, por sua vez, apresenta uma lista bibliográfica comentada. Como o Miguel reconhece, não se trata de oferecer uma lista exaustiva de obras relevantes, antes apresentar alguns textos que são particularmente frutíferos para o autor. Há preponderância de livros em inglês e português de Portugal, o que será, inevitavelmente, insuficiente para quem procura materiais realizados por brasileiros (as) (um complemento a este guia seria a adição de produções nacionais). Nesta seleção um tanto idiossincrática de bibliografia, cada um terá seus pontos de concordância e divergência. Eu sinto-me especialmente contente pelo reconhecimento do texto “Ilíada ou o Poema da Força” (1939) de Simone Weil, um ensaio pouco comentado em certos ambientes acadêmicos, mas que é, como escreve Miguel, “talvez  o  mais  belo  e  influente  ensaio  alguma  vez  escrito  sobre  a  Ilíada“. A avaliação do autor sobre o livrinho de grego escrito por Carlos Alberto Louro, contudo, parece-me excessivamente negativa. Por fim, um item que poderia ser de utilidade para os (as) estudantes, ausente do guia, seria a opinião do autor sobre as melhores traduções (e lacunas de tradução) em língua portuguesa de autores relevantes da cultura greco-romana, como Homero, Tucídides, Políbio e Tácito. 

Os comentários acima dão apenas uma pequena amostra da riqueza deste Guia, oferecido aos (às) leitores (as) lusófonos (as) de maneira generosa e gratuita pelo autor. A nós, então, cabe a tarefa de aplaudir este ato de divulgação dos estudos clássicos, que está imbuído da convicção da relevância da sabedoria antiga para o nosso tempo.

[ Link para baixar o Guia de Iniciação aos Estudos Clássicos por Miguel Monteiro: aqui ]

 


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Félix Jácome

Historiador. Doutor e Mestre em Estudos Clássicos - Mundo Antigo- na Universidade de Coimbra. Apaixonado pelas culturas antigas e sua importância para o nosso mundo.

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